Propomos aqui a leitura de cinco poemas de Fernando Pessoa, que o poeta publicou durante a sua vida enquanto autor ortónimo, ou seja, Pessoa ele-próprio, não sendo estes versos atribuídos a heterónimos ou alter-egos.

Esta seleção inclui versos particularmente representativos da estética e do percurso do escritor. Com efeito, aqui se encontram o primeiro e o último poema que Pessoa publicou enquanto ortónimo, assim como o célebre poema «Autopsicografia» em que Pessoa confessa que «O poeta é um fingidor».

Publicamos os textos assim como a imagem da publicação original, por ordem cronológica de publicação com os dados bibliográficos de cada poema.

Boa leitura!

«Impressões do Crepúsculo – I» (1914)

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minh’alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho —
Soas-me sempre distante…

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

(A Renascença, fevereiro de 1914, p. 11)

«Passos da Cruz – II» (1916)

Há um poeta em mim que Deus me disse…
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice…

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos…
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse…

Florir do dia a capitéis de Luz…
Violinos do silêncio enternecidos…
Tédio onde o só ter tédio nos seduz…

Minha alma beija o quadro que pintou…
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e voo…

(Centauro, 1, outubro-dezembro de 1916)

«Abdicação» (1920)

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.

Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.


Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

(Ressurreição, 9, fevereiro de 1920, p. 4)

«Autopsicografia» (1932)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

(Presença, 36, novembro de 1932, p. 9)

«Conselho» (1935)

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faz canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faz de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…

(Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, 3, novembro de 1935, pp. 5-6)


Nota introdutória e seleção por Fabrizio Boscaglia.

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