Natural da grande ilha italiana da Sardenha, Mariano Deidda é o cantautor italiano famoso por ter dedicado grande parte da sua obra a cantar os versos de Fernando Pessoa, traduzidos para italiano. Definido pela imprensa como «o cantapoeta», Mariano Deidda publicou discos em Itália e em Portugal, país onde o seu trabalho é reconhecido e onde atuou em importantes palcos, eventos e teatros como, entre outros, a Exposição Mundial de 1998, o Teatro Nacional D. Maria II, o Teatro São Luiz de Lisboa e o Centro Cultural de Belém.


As suas colaborações são ricas, inclusivamente com músicos e cantores portugueses, lusófonos e internacionais, como, entre outros, o fadista português Camané, a cantora portuguesa Mafalda Arnauth, a cantora cabo-verdiana Celina Pereira, o cantor brasileiro Carlos Careqa e o baixista jazz checo Miroslav Vitous.


O seu disco mais recente, publicado em 2022 em Portugal pela editora Valentim de Carvalho, intitula-se Faust, e é dedicado à obra Fausto de Fernando Pessoa, na tradução italiana de Maria José de Lancastre. Nesta entrevista, o «cantapoeta» conta-nos mais acerca da sua paixão por Pessoa e deste mais recente projeto.

Mariano Deidda. Fotografia: Rita Carmo

Mariano Deidda, dedicou muitos discos a Fernando Pessoa. Como surgiu a sua paixão pelo grande poeta português?

A ideia nasceu há muitos anos, mais de trinta, desde a primeira vez que li o Livro do Desassossego, na tradução de Antonio Tabucchi. Fiquei imediatamente impressionado com esta escrita orientada para o futuro, e decidi mudar o meu projeto artístico para me concentrar no encontro entre a música e a literatura. Questionei-me: «por que estou a escrever letras para as minhas músicas, se já há autores que escreveram tudo?». Pessoa é um deles, um artista a cujo trabalho está certamente destinado a apelar às gerações futuras.

O meu amor pelo grande escritor português tem vindo a crescer com o tempo, precisamente porque todos os dias tenho descoberto, enquanto o leio, quanto a sua escrita evolui a cada nova leitura.
Por vezes, eu próprio senti-me quase um heterónimo de Pessoa, como me disse há alguns anos Antonio Tabucchi: «aqueles que trabalham em Pessoa durante muitos anos tornam-se o seu heterónimo». É um autor que sinto presente na minha vida, acredito que não passa um dia em que não fale com alguém sobre ele.

Como descreveria o encontro entre a música e a literatura?

Mariano Deidda. Foto do site https://marianodeidda.com/gallery/

A imagem certa para pensar no meu trabalho entre música e literatura é esta: fazer um vestido para as palavras. É uma tarefa muito difícil, porque geralmente quando se faz um disco, a música vem primeiro, enquanto neste tipo de projeto as palavras já lá estão e é preciso permanecer fiel a elas, sem as distorcer. É necessária uma grande sensibilidade.

Através deste trabalho, quero trazer beleza às pessoas. Por beleza entendo tudo o que pode ensinar alguma coisa. Devemos todos olhar para dentro de nós próprios e decidir passar parte da nossa vida a aprender, a adquirir beleza. Entendo o meu trabalho como um trabalho cultural para este fim.

O que representa o seu novo disco, Faust?

Fausto é uma peça de teatro em que Fernando Pessoa trabalhou de 1908 a 1933, numa interpretação sua da lenda do alquimista Johann Georg Faust, símbolo da busca de um conhecimento impossível. Trata-se de uma figura que, como é sabido, anteriormente tinha sido interpretada no célebre Faust de Goethe entre 1797 e 1832.

Costumo dizer que o Fausto de Pessoa, na música, hoje, é um ato de coragem, um grito poderoso e diferente, que procura agitar as consciências e sobretudo os olhos de uma humanidade que continua a não querer ser surpreendida. A covid-19 mostrou-nos brutalmente que não podemos colocar-nos no lugar de um Deus hipotético. Fernando Pessoa escreveu: «Toda a vida delirei, e assim fui ao céu sem custo, nem por que lá fui eu sei. Meu egoísmo e vã preguiça um choroso amor gerou, de ser Deus tive a cobiça, vê se sou Deus ou não sou!».

A covid-19 veio até nós para nos fazer entender os nossos limites, para nos mostrar que acabou uma era, começando uma nova, desconhecida, tudo com o intuito de refletir, de nos empurrar e fazer pensar nos nossos erros, antes de mais nada para olharmos por nós mesmos e para o planeta Terra, nossa única casa. O Fausto de Pessoa ensina-nos hoje que devemos cuidar da Vida e nunca haverá algo tão importante. Ela permanecerá inalterada no tempo que ainda está para chegar e toda a humanidade jamais poderá substituir o mito, porque os mitos foram criados para que a humanidade pudesse alegrar-se e viver feliz por meio deles.

Hoje, o Fausto de Pessoa na música representa um passo em frente, uma ponte entre o que foi e o que deveria ser. Meus Fausto e Pessoa vão nessa direção: porque o mundo não só é sonhado, mas é dentro um outro sonho em que sonhados são os sonhadores… Grandes mudanças e grandes transformações quase sempre enfrentam o medo e a dor. Gente sem vontade, sem coragem, que não sabe sonhar, dorme para sempre.

Mariano Deidda e Camané cantam «Il canto delle tessitrici» no disco Faust

Muito obrigado, Mariano Deidda. Em conclusão, gostaria de acrescentar algo?

Gostaria de citar alguns versos do heterónimo Álvaro de Campos, do célebre poema «Tabacaria». Todos deviam levar esta frase no bolso do peito, como um código secreto….

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Mariano Deidda. Imagem do site https://marianodeidda.com/gallery/

Entrevista realizada por Fabrizio Boscaglia

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