No ano de 1923, Fernando Pessoa vive já há algum tempo na Rua Coelho da Rocha, n.º 16, 1º Dto., onde hoje se encontra a Casa Fernando Pessoa. No mês de julho deste ano, a sua irmã Henriqueta (Teca) casa-se e deixa a mesma morada, levando consigo a mãe de Fernando e dela, para ir viver perto da zona de Benfica.


Em fevereiro de 1923, Fernando Pessoa tinha publicado, numa das mais importantes revistas do modernismo português – Contemporâneao poema «Lisbon Revisited (1923)», do heterónimo Álvaro de Campos, contendo estes versos dedicados à cidade de Lisboa, onde Pessoa tinha nascido em 1888 e onde viveu durante a grande parte da sua vida:

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Outro poema de Álvaro de Campos, com um título quase igual – «Lisbon Revisited (1926)» será publicado três anos depois na mesma revista Contemporânea.

Contemporânea, n.º 8 (1923) e n.º 2 (1926)

Além disso, 1923 é um ano em que são publicados mais textos de Pessoa na Contemporânea – em português, francês e inglês – e ainda outros escritos dele, entre os quais duas entrevistas (uma na Revista Portuguesa, outra realizada por Francisco Manuel Cabral Metelo) e um escrito dedicado a Edgar Allan Poe, um dos seus “mestres” literários da língua inglesa, na tradução de O Baile das Chamas (Delta, 1923), realizada pelo amigo de Pessoa, Augusto Ferreira Gomes (sob o pseudónimo Carlos Sequeira).

Contemporânea, n.º 7 (1923); Revista Portuguesa, n.º 23-23 (1923)

No mesmo ano de 1923, Fernando Pessoa continua ativo nos trabalhos da editora e firma Olisipo, que tinha fundado em 1921. Em fevereiro, a própria Olisipo publica o folheto Sodoma Divinizada, da autoria de Raul Leal, autor e pensador que tinha feito parte do grupo de autores ligados à revista Orpheu em 1915.

Logo em março, o Governador Civil de Lisboa, major Viriato Lobo, ordena a apreensão de vários livros considerados “imorais”, entre os quais Canções de António Botto (reeditado em 1922, com versos de conteúdo homoerótico) e o já referido Sodoma Divinizada de Raul Leal, ambos publicados pela Olisipo. A campanha de reação à publicação dos dois livros tinha sido começada pela Liga de Acão dos Estudantes de Lisboa, nas páginas do diário conservador, católico e monárquico A Época, a 20 de fevereiro de 1923.

Fernando Pessoa reage a este episódio, fazendo circular dois manifestos escritos por eles, em defesa dos autores das obras em questão. Um dos manifestos, Aviso por causa da moral, é assinado pelo heterónimo Álvaro de Campos. O outro, intitulado Sobre um manifesto de estudantes, em resposta ao escrito da Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, Dos estudantes das Escolas Superiores de LisboaAos poderes constituídos e a todos os homens honrados de Portugal, é de Pessoa ortónimo. Ainda no que respeita a António Botto, Pessoa publica em 1923 o prefácio do livro de Botto, intitulado Motivos de Beleza.

Naquele período, Fernando Pessoa estava atento ao que acontecia de análogo enquanto a apreensão de livros considerados imoráis em Itália, onde Mussolini tinha recentemente subido ao poder, começando-se os cerca de vinte anos do regime fascista italiano.


A ação de Pessoa neste contexto é um dos eventos que consubstanciam o seu interventismo público, enquanto homem que se definiu «liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário», tal como o próprio Pessoa declarou poucos meses antes de falecer, em 1935.

Fabrizio Boscaglia

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