O Lisboa Pessoa Hotel surge na mesma morada onde existia a Tipografia do Comércio, que em 1915 imprimiu as duas cópias de Orpheu – Revista Trimestral de Literatura, provavelmente a publicação periódica mais importante da cultura portuguesa contemporânea. Na Rua Oliveira ao Carmo, n.º 10 (hoje, n.º 8), no centro de Lisboa, o legado cultural de Pessoa e de Orpheu continua assim vivo e atual, através de um projeto turístico-literário a eles dedicado.
Orpheu e o Modernismo em Portugal
Liderada pelos poetas e amigos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, Orpheu representou um movimento cultural ambicioso e fortemente inovador nas artes e no contexto português dos inícios do século XX. A chamada Geração de Orpheu foi, de facto, a responsável pelo brotar do Modernismo em Portugal, assim como pela introdução e reinterpretação de correntes literárias e artísticas internacionais – como o Futurismo -, tanto na literatura, como nas artes plásticas.
Alguns outros nomes desta importantíssima Geração são, além de Pessoa e Sá-Carneiro, os artistas Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, o compositor Ruy Coelho e ainda os escritores Ângelo de Lima, Armando Côrtes-Rodrigues e Alfredo Pedro Guisado.
Onde nasceu Orpheu
É sabido que os dois números de Orpheu foram impressos na referida Tipografia do Comércio, que se encontrava no nº 10 da Rua da Oliveira ao Carmo, enquanto a redação da revista tinha sede na Livraria Brasileira, no nº 190 da Rua Áurea (também conhecida como Rua do Ouro). O diretor do primeiro número, o escritor e editor Luís de Montalvor, morava no nº 17 do Caminho do Forno do Tijolo, que desde 1924 veio a chamar-se Rua Angelina Vidal.
A data simbólica que o astrólogo Fernando Pessoa anotou como sendo a do nascimento de Orpheu é o dia 26 de março de 1915, quando pelas 19h foram vendidas as primeiras cópias do número 1 da revista, que acabavam de sair da própria Tipografia do Comércio, a qual, curiosamente, encontra-se na prolongação daquele Largo do Carmo onde o próprio Pessoa tinha vivido entre 1910 e 1911, num apartamento situado n.º 18-20. Repare-se igualmente que o outro líder de Orpheu, Mário de Sá-Carneiro, morou nesta zona, nomeadamente na Travessa do Carmo, n.º 1.
A Lisboa de Orpheu envolve outras moradas e sítios, como é o caso dos cafés literários onde decorriam as sessões e tertúlias em que se debatiam os temas e autores a integrar na revista, e onde se comentavam ironicamente as polémicas que Orpheu suscitou – e suscitou muitas, dada a ruptura que representava na literatura portuguesa! – aquando da sua publicação. O Restaurante Irmãos Unidos, no Rossio, e o Café Brasileira do Chiado, são locais onde as memórias de Orpheu ficaram no ar. É da Brasileira que Pessoa escrevia, em abril de 1915, poucos dias após a publicação do primeiro número, a Côrtes-Rodrigues:
«Somos o assunto do dia em Lisboa»; sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente — mesmo extra-literária — fala no Orpheu.
Há grandes projectos.
Orpheu teve, do ponto de vista editorial e tipográfico, uma vida breve, porque após os primeiros dois números acabaram os fundos para se publicar a revista. Assim, o terceiro número, já paginado, teve de esperar até 1983 para sair. Contudo, o que veio à luz em 1915 foi o suficiente para revolucionar a cultura portuguesa contemporânea, graças a obras paradigmáticas do modernismo português, como «O Marinheiro» e «Chuva Oblíqua» de Fernando Pessoa, «Opiário» e «Ode Marítima» do seu heterónimo Álvaro de Campos, e ainda «Manucure» de Sá-Carneiro e os hors-texte de Santa-Rita Pintor.
Rua Oliveira ao Carmo: uma morada literária
A zona do Carmo está hoje caracterizada sobretudo pela presença do Museu da Guarda Nacional Republicana, edifício que foi sede de importantes eventos na Revolução de 25 de abril de 1974, e pela Igreja do Carmo, um dos monumentos mais visitados de Lisboa, que integrava o homónimo Convento medieval fundado por Nun’Alvares Pereira, o «Santo Condestável» ao qual Pessoa dedica um poema no livro Mensagem (1934). A Rua Oliveira ao Carmo participa de alguma forma desta topografia religiosa, porque nela se situa uma parte lateral da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, que tem a fachada principal no Largo.
Esta zona e esta rua têm, curiosamente, toda uma história literária e cultural, em parte ligada a Orpheu, como parcialmente já assinalámos. Para além do que se mencionou, note-se que, nos tempos de Pessoa, na mesma Tipografia que imprimiu Orpheu, era impresso o jornal A Causa. Mais recentemente, no n.º 8 da Rua Oliveira ao Carmo, teve a sua sede o jornal Diário Económico, que entretanto também deixou de existir.
Entre outras referências literárias que poderemos mencionar, vale sem dúvida a pena referir pelo menos mais uma. Trata-se do romance de José Saramago O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), obra que homenageia Fernando Pessoa através do destaque dado ao seu heterónimo Ricardo Reis, numa representação crítica dos primeiros anos do «Estado Novo» em Lisboa. Eis como o fantasma de Pessoa aparece ao seu amigo, o poeta classicista e médico Ricardo Reis, num dia de carnaval na própria Rua de Oliveira ao Carmo, onde cerca de vinte anos antes Orpheu vinha à luz:
[Ricardo Reis] ia continuar o seu caminho, Chiado acima, quando de repente lhe pareceu ver um vulto singular […] aproximou-se para ver melhor, o homem tinha a altura, a compleição física de Fernando Pessoa […]. A figura olhou-o rapidamente e afastou-se […], Ricardo Reis foi atrás dela, viu-a subir a Calçada do Sacramento […]. Atravessou o Largo do Carmo, enfiou, quase a correr, pela Rua da Oliveira, escura e deserta, mas Ricardo Reis via-o distintamente, nem perto nem longe, um esqueleto a andar, igualzinho àquele em que aprendera na faculdade de Medicina […]. Terá Saramago querido homenagear Orpheu de forma velada? Sabia ele desta importante correspondência topográfica e literária que liga a Rua Oliveira ao Carmo à vida e à obra de Fernando Pessoa? Seja como for, a rua e as referidas moradas são hoje novamente locais literários, devido à presença, no n.º 8 (que incorpora, hoje, o antigo n.º 10) do Lisboa Pessoa Hotel, hotel temático dedicado a Fernando Pessoa, que dinamiza atividades e programação turístico-literárias e culturais ligadas ao poeta português e a Orpheu.
Sentir tudo de todas as maneiras
«Sensacionismo» foi o nome da corrente literária e cultural dos jovens de Orpheu. Esta expressão reflete o “credo” órfico pelo qual, na arte assim como na vida, é preciso «Sentir tudo de todas as maneiras», conforme lemos na «Passagem das Horas» de Álvaro de Campos, poeta sensacionista:
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
A proposta cultural dos sensacionistas foi uma proposta interseccionista, no sentido em que queria realizar uma «uma arte síntese de nações e de épocas e de artes», tudo convergindo naquele «maravilhoso movimento sintético» que Orpheu quis ser, manifestando assim outra vertente fundamental desta Geração: o cosmopolitismo, o ser cidadãos do mundo, o fazer arte autenticamente portuguesa e profundamente universalista ao mesmo tempo (cf. Sensacionismo e outros ismos, pp. 75, 220). O ter em si «todos os sonhos do mundo», como anos depois escreveu ainda Álvaro de Campos no poema «Tabacaria».
O Lisboa Pessoa Hotel propõe-se tributar esta mensagem, esta Geração e o seu líder Fernando Pessoa, através de uma ideia e um projeto de Turismo Literário que, já hoje, conta com pisos e quartos tematizados, uma biblioteca inspirada em Pessoa, um restaurante dedicado ao livro Mensagem, roteiros literários, eventos culturais, apoio à edição da obra de Pessoa, parcerias com importantes entidades académicas e culturais, para além de, obviamente, este blogue literário.
A 21 de junho de 2019, no dia do solstício de verão, um evento intitulado «Onde Nasceu Orpheu» foi o primeiro momento em que o Lisboa Pessoa Hotel assumiu a vertente órfica do seu projeto turístico-literário. Foi uma tarde de literatura e arte, com uma mesa redonda na qual participaram os investigadores Ricardo Marques e Marta Soares (ambos da Universidade Nova de Lisboa). Foi, inclusivamente, o dia da inauguração da exposição do pintor Goulart, intitulada «Qualquer caminho leva a toda a parte», homenageando o primeiro verso dum poema sensacionista de Pessoa, escrito um século antes, em 1919.
Assim, com toda a humildade que é mandatória quando trabalhamos com gigantes da cultura e do património, como são os casos de Pessoa e de Orpheu, procuramos, no Lisboa Pessoa Hotel contribuir para o intuito programático dos seus fundadores, concretizando algo que o próprio Pessoa afirmava em 1935, ano da sua partida física:
Orpheu acabou. Orpheu continua.
Fabrizio Boscaglia