O ano de 1920 é marcante para a vida íntima, familiar e sentimental de Fernando Pessoa. Com efeito, é neste ano que o escritor vive a primeira fase do namoro com Ofélia Queirós. Além disso, trata-se do ano em que a mãe de Pessoa – Maria Madalena Pinheiro Nogueira – regressa a Lisboa da África do Sul, com três irmãos de Pessoa, após a família ter ali vivido durante cerca de vinte e quatro anos. Do ponto de vista literário, 1920 é, para Pessoa, um período de escrita e publicações em duas línguas, português e inglês, no início de uma década que será prolífica, em termos de publicações, para o autor.
As duas mulheres da sua vida
A mãe e a namorada. Pode-se dizer que foram os dois grandes amores femininos de Fernando Pessoa. A mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira (1861-1925), nascida na ilha Terceira e tendo vivido a grande parte da sua vida entre Porto, Lisboa e Durban, terá sido a primeira figura em que se encarnou a inspiração literária do jovem Pessoa. Leitora e amante de livros, gostava de escrever versos, conhecia a língua francesa e tinha familiares igualmente versados nas letras. Claramente, tudo isso exerceu uma influência na educação literária de Pessoa. É sabido, além disso, que este dedicou à sua querida mãe os primeiros versos escritos em português, com sete anos de idade, em 1895, na casa situada na Rua de São Marçal, n.º 4, onde a família tinha ido viver após a morte do pai de Pessoa, Joaquim de Seabra Pessoa (1850-1893).
Terão, estes versos, contribuído para a decisão de a mamã levar consigo o filho a Durban, África do Sul, onde ela ia juntar-se ao seu novo marido, João Miguel Rosa (1857-1919), que naquele país trabalhava como cônsul português. Pessoa viveu naquela parte do Império Britânico entre 1896 e 1905, enquanto a sua mãe regressou à capital lusa a 30 de março 1920 com três irmãos de Pessoa, no mesmo período em que este começava o seu namoro com Ofélia Queirós. É, esta, a altura em que o poeta se muda para o apartamento da Rua Coelho da Rocha, n.º 16, 1º Dto., no bairro de Campo de Ourique, onde passa a viver com a própria mãe e com a irmã Teca (Henriqueta), enquanto mais dois irmãos dele, João e Luís, seguem para Inglaterra, onde vão viver. Nesta morada – em que hoje existe a Casa Fernando Pessoa – Pessoa vive os últimos quinze anos da sua vida, sozinho a partir de 1923, ano em que a irmã e a mãe mudam para outra morada.
À mudança que Pessoa efetua, de Benfica a Campo de Ourique, o poeta dedicou várias passagens das cartas dirigidas à mencionada Ofélia, em inícios de 1920. Tratámos, num anterior artigo deste blogue, das primeiras fases deste namoro. Aqui, pretendemos destacar uns versos que o próprio Pessoa dedicou à jovem Ofélia em inícios de 1920, aquando dos primeiros beijos entre os dois e de uma certa indefinição que possivelmente ainda acompanhava o relacionamento:
«Não creio ainda no que sinto –
Teus beijos, meu amor, que são
A aurora ao fundo do recinto
Do meu sentido coração…»
A primeira fase deste namoro, como é sabido, durou até finais de novembro. No dia 29 deste mês, Fernando dirigiu a Ofélia algumas misteriosas palavras, pelas quais, ao comunicar a ela que «[o] amor passou» (o que não terá correspondido inteiramente à realidade, pois como sabemos o namoro recomeçou em 1929), o poeta afirmava, através de enigmáticas expressões, a prioridade da sua missão intelectual sobre a sua vida sentimental:
«O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.»
A «Lei» ao qual obedece a vida de Pessoa é a que governa a existência dos génios, os que têm de contribuir para o avanço da cultura e da civilização. Segundo Pessoa, esta lei não lhe terá permitido desviar a sua atenção da coisa que afinal mais lhe interessava na vida: ser o maior e mais universal escritor de Portugal, isto é, o «supra-Camões», como o próprio se definiu num célebre artigo de 1912.
Sebastianismo e cosmopolitismo
O tom profético e misterioso das palavras de Pessoa reflete o grande interesse deste pelo ocultismo e as matérias esotéricas. Em 1920, estas vertentes tomam forma num importante poema que o escritor dedicou «À Memória do Presidente Sidónio Pais», publicado em fevereiro no jornal Acção, órgão militante do sidonismo. Contudo, não é só a figura política do Presidente da República Sidónio Pais (1872-1918) que interessa a Pessoa neste escrito, posteriormente conhecido pelo título «À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais». Com efeito, o próprio «Presidente-Rei» será, nos versos de Pessoa, sobretudo mitificado como a prefiguração do regresso messiânico de D. Sebastião:
«Flor alta do paul da grei,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou el-rei
Dom Sebastião.»
O mítico regresso do Desejado é, por sua vez, na obra de Pessoa, a metáfora do início de uma nova era cultural e espiritual da humanidade, o Quinto Império, expressão que Pessoa reinterpreta a partir da obra de Padre António Vieira e à qual consagra vários textos, nomeadamente um poema no livro Mensagem (1934), do qual citamos alguns versos:
«Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?»
Uma resposta a esta pergunta é, segundo achamos, bastante óbvia. É o próprio Fernando Pessoa que sente sobre si a missão e a responsabilidade de inaugurar o Quinto Império – isto é, uma nova era da civilização -, através da sua obra e pela universalização da literatura portuguesa, tornando-se assim no anunciado «supra-Camões».
O Sebastianismo e o Quinto Império de Pessoa não são, contudo, apenas exercícios de um enigmático ocultismo. Trata-se também de uma visão da história da humanidade, a caminho, segundo Pessoa, de uma nova era de cosmopolitismo e síntese entre culturas. Vejam-se, a este respeito, os textos de Pessoa sobre Sebastianismo e Quinto Império, editados por Pedro Sepúlveda e Jorge Uribe (Ática, 2011). O dito «Quinto Império» cosmopolita é de alguma maneira já vivido pelo próprio Pessoa, inclusivamente pelo assumido cosmopolitismo deste, do qual um dos sinais é o facto de Pessoa ter sido um poeta de várias línguas (português, inglês e francês). Este amante da pátria portuguesa, ao mesmo tempo era um intelectual-cidadão do mundo, que inclusivamente publicou poemas na Inglaterra, como é o caso de «Meantime», saído em Londres, em The Athenaeum, no próprio ano de 1920:
«Far away, far away,
Far away from here…
There is no worry after joy
Or away from fear
Far away from here.
[…]»
Note-se que, neste ano, Pessoa terá também pensado ir viver a Londres com os seus dois irmãos Luís e João, acima referidos. Ainda em 1920, o cosmopolitismo pessoano reflete-se nos planos para a constituição da editora Olisipo, fundada no ano seguinte, que segundo o seu criador deveria impulsionar, entre outras publicações, traduções para português de obras literária estrangeiras.
As referências à Antiga Grécia no citado poema «Quinto Império» e na própria palavra Olisipo – antigo e lendário nome de Lisboa enquanto cidade fundada por Ulisses – sugerem uma indireta ligação com a produção heterónima de Pessoa em 1920, nomeadamente com os versos neopagãos de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro. Ambos são, sem dúvida, entre os heterónimos pelos quais Pessoa mais procurou reinterpretar o legado estético e filosófico da Grécia, que segundo ele é o berço da civilização, tanto do passado, como do presente, como do cosmopolita e futuro «Quinto Império».
Para finalizarmos esta breve e incompleta panorâmica sobre o ano de 1920 na vida e na obra de Pessoa, citamos um poema ortónimo em português, publicado naquele mesmo ano na Ressurreição, intitulado «Abdicação». Aqui, o autor novamente trabalha a metáfora literária do rei, que, como vimos, está diretamente relacionada com a tomada de consciência, pelo escritor, da sua missão literária e cultural. Uma tomada de consciência que terá tido, em 1920, momentos de significativo desenvolvimento. Eis então o rei-Pessoa que voluntariamente abdica, para mergulhar na «noite eterna» da inspiração, esse «nada» – citando «Tabacaria» de Álvaro de Campos – no qual existem, contudo, «todos os sonhos do mundo». Matriz misteriosa e fecunda – como uma mãe – da criatividade pessoana.
«Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.»
(F. Pessoa)
Fabrizio Boscaglia
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