Muitas vezes foi dito e relembrado que o apelido Pessoa, tendo origem no latim persona, «máscara», é fatalmente apropriado ao poeta ao qual coube este nome – Fernando Pessoa. Universalmente conhecido como o autor dos heterónimos, o poeta de Lisboa fica na história da literatura como o demiurgo dos numerosos autores fictícios que povoam e assinam a sua própria obra. Pessoa é, pois, e será, o poeta das máscaras. Nomem omem, diziam os próprios latinos: o nome é um presságio.
Aproveitamos deste curioso e famoso facto para introduzirmos um tema da poesia pessoana, particularmente apropriado para ser levantado no período invernal em que, principalmente no Ocidente, se celebra a festa das máscaras. Estamos obviamente a falar do Carnaval, ao qual Pessoa dedicou versos, sobretudo do heterónimo Álvaro de Campos, para além do ortónimo. Não estranha que, dado o seu apelido e dada a sua vocação para a despersonalização e a ficção, o escritor luso tenha integrado o imaginário e a ideia do Carnaval nos seus poemas.
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Quanto ao ortónimo, não serão muitos os versos dedicados ao Carnaval. Contudo, são dos mais significativos, pelo menos para quem tiver interesse na vertente mais espiritual da obra e do pensamento pessoano. Trata-se de um poema, escrito em 1930, em que o ortónimo enfrenta e atravessa o «Carnaval» da sua «alma irreal», num desassossego metafísico que se resolve no amoroso encontro com Deus:
Mas quanta vez descrente
Do ser insubsistente
Com que no Carnaval
Da minha alma irreal
Vestira o que sentisse
Vi quem era quem não sou
E tudo o que não disse
Os olhos me turvou…
Então, a sós comigo,
Sem me ter por amigo,
Criança ao pé dos céus,
Pus a mão na de Deus.
E no mistério escuro
Senti a antiga mão
Guiar-me, e fui seguro
Como a quem deram pão.
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Quanto a Álvaro de Campos, o engenheiro cosmopolita terá tido alguma especial consideração para os versos que intitulou «Carnaval», já que os mesmos são mencionados pelo próprio num texto em prosa dedicado a Alberto Caeiro, estando indicados como entre os primeiros a terem sido escritos pelo próprio poeta tavirense. Eis alguns deles:
A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira…
Em Campos, o tema do Carnaval está associado, de forma clara e manifesta à própria figura literária da máscara, isto é, à antiga e sempre atual questão «Quem sou eu?», tão familiar a Pessoa. Leiam-se estes versos:
Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
Ironia e metafísica se misturam, num outro poema de Campos:
Estou morto, de tédio também
Eu bato, a rir, com a cabeça nos astros
Como se desse com ela num arco de brincadeira
Estendido, no carnaval, de um lado ao outro do corredor,
Irei vestido de astros; com o sol por chapéu de coco
No grande Carnaval do espaço entre Deus e a vida.
Não faltam, na obra do heterónimo algarvio, passagens daquelas que, sendo tão breves e incisivas, facilmente passam a integrar o grande património humano e digital das citações que descrevem de forma genial e sibilina a inquieta – e por vezes paradoxal – existência humana, como esta: «Cada momento é um carnaval imenso».
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O Carnaval é evocado, ainda por Campos, como imagem que descreve um dos grandes mestres da poesia deste heterónimo, e de Pessoa em geral. Estamos a falar do escritor americano Walt Whitman, ao qual o engenheiro dedica o poema «Saudação a Walt Whitman», escrito a 11 de junho de 1915, poucos meses depois da publicação da revista Orpheu. Assim Campos homenageia e saúda Whitman:
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos
E a solidão do poeta emerge, naquela tristeza que é paradoxalmente tão típica, para muitos, desta festa supostamente alegre, na verdade misteriosa e em alguns aspetos desassossegante:
É Carnaval, e estão as ruas cheias
De gente que conserva a sensação,
Tenho intenções, pensamento, ideias,
Mas não posso ter máscara nem pão.
Esta gente é igual, eu sou diverso —
Mesmo entre os poetas não me aceitariam.
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Não estranha que tenha sido Álvaro de Campos o «autor» mais prolífico, dentro da coterie pessoana, no que respeita às menções ao Carnaval. Festa da exuberância, com ancestrais raízes nas antigas civilizações, o Carnaval ficou a integrar os costumes dos países católicos. Este sincretismo, que diríamos «triste e alegre» como a Lisboa do poema «Lisbon Revisited (1926)», é expressão extrema do sensacionismo de Campos, tão bem definido pelos versos dum seu famoso poema:
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
Numa Veneza da alma, não duvidamos, Campos estará ainda a celebrar o Carnaval «de todos os lados», desfilando e bailando e secretamente entristecendo de alegria e futuro.
Fabrizio Boscaglia
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Origens das imagens:
Bloco Tabacaria no Carnaval de Salgueiro (Foto: Divulgação / Prefeitura de Salgueiro)
Venezia – Maschera in Piazza San Marco (Foto: Massimo Teló)