No início do século XX, os hotéis representavam o cosmopolitismo e o avanço da modernidade, que se ia afirmando pela tecnologia dos transportes e permitia assim movimentos cada vez mais rápidos, viagens cada vez mais internacionais pelo mundo.
O sonho modernista e cosmopolita da Geração de Orpheu foi encarnado de forma peculiar pelo poeta Mário de Sá-Carneiro, o melhor amigo de Pessoa, que várias vezes escreveu a este de hotéis de cidades europeias, como Barcelona e Paris. E foi num hotel da capital francesa, em 1916, que Sá-Carneiro se suicidou, deixando o seu amigo Pessoa a entristecer, numa Lisboa primaveril e saudosa, cidade que em 1934 o poeta da Mensagem ainda cantava, em versos dedicados àquele seu único grande amigo:
«É como se esperasse eternamente
A tua vinda certa e conhecida
Aí em baixo, no café Arcada —
Quase no extremo deste Continente;»
Fernando Pessoa frequentou hotéis pelo menos em Lisboa, aquando de visitas de familiares de passagem na capital lusa, onde ele vivia, e durante viagens feitas por ele mesmo, como uma em 1909 a Portalegre, cidade onde foi comprar as máquinas para montar em Lisboa a tipografia Íbis, primeira tentativa, entre várias outras, do frustrado empreendedorismo de Pessoa.
No que respeita à sua obra, uma imagem cosmopolita e pouco conhecida de hotel encontra-se numa entrevista com Alberto Caeiro, o «mestre» dos heterónimos. O encontro fictício entre o entrevistador e Caeiro acontece num hotel de Vigo, na Galícia, terra da qual terá vindo uma parte da família materna do próprio Pessoa. Eis uma passagem da entrevista:
«Apresentou-nos um amigo comum. E à noite, ao jantar, na sala […] do Hotel […], eu tive com o poeta esta conversa, que eu ansiei poder converter-se em entrevista.
Eu dissera-lhe da minha admiração perante a sua obra. Ele escutara-me como quem recebe o que lhe é devido, com aquele orgulho espantoso e fresco que é um dos maiores atractivos do homem, por quem, de supor é, lhe reconheça o direito a ele.»
A imagem do hotel adquire um sentido mais complexo, psicológico e filosófico, em duas obras pessoanas de matriz diarística, o Livro do Desassossego, e A Educação do Estóico. O autor deste segundo livro, o pessimista Barão de Teive, outra criação do laboratório heteronímico pessoano, deixa o seu único manuscrito na gaveta de um hotel, antes de se suicidar. Manuscrito que, na ficção heteronímica, Pessoa encontrará mais tarde. Eis Teive:
«Para não deixar o livro em cima da mesa do meu quarto, sujeito assim ao exame de mãos suspeitamente limpas dos criados do hotel, abri, com certo esforço, a gaveta, e meti-o lá, empurrando-o para trás.»
Parece clara, na biografia fictícia de Teive, uma relembrança dos acontecimentos últimos da vida de Sá-Carneiro. Menos triste, mas ainda assim inquieta, é a imagem do hotel que aparece em trechos do Livro do Desassossego, como este, escrito há cerca de um século, em 1919:
«Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, […] prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um ou outro mais sóbrio, o conviva lento que ficou sem razão.»
Solidão, suspensão, intemporalidade, abdicação… Eis as sensações e ideias que o trecho transmite:
«Suponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por onde subiu até àquele meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o maior que me suponho não é posterior a nenhuma vida que tivesse; não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquele viver daquele hotel provinciano cansado já de conversas de anedotas que teve com os parceiros na demora.»
Não se trata, aqui, do hotel cosmopolita dos dândis e dos escritores modernistas, antes a imagem nos apresenta o hotel como metáfora do interlúdio, do interstício existencial, do intervalo entre o sujeito psicológico e a concretização de si próprio, do espaço intermédio e vazio de vida, mas fecundo de poesia, tão característico da estética pessoana, e do Livro do Desassossego em particular.
Na mesma obra, o hotel aparece noutro trecho, como pormenor nostálgico, aparentemente anónimo, mas emocionalmente significativo, enquanto imagem de um momento vivido e, por isso, perdido, numa lamentação sobre o pesado que a passagem do tempo leva consigo, na consciência do escritor:
«Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio — sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exacto momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.»
Finalmente, eis Álvaro de Campos, o heterónimo mais cosmopolita, o engenheiro viajante do «Sentir tudo de todas as maneiras», que tem em si «todos os sonhos do mundo» e traz no seu coração «Todos os lugares onde estive». O estranhamento da sua vida de «transeunte» e de «estrangeiro aqui como em toda a parte», emerge ainda no poema «Os Emigrados», em que a imagem do hotel, como lugar-não-lugar, reforça o sentido de alienação, impalpabilidade e inacabamento que o escrito transmite:
«Sós nas grandes cidades desamigas,
Sem falar a língua que se fala nem a que se pensa
Mutilados da relação com os outros
Que depois contado na pátria os triunfos da sua estada.
Coitados dos que conquistam Londres e Paris!
Voltam ao lar sem melhores maneiras nem melhores caras
Apenas sonharam de perto o que viram —
Permanentemente estrangeiros.
Mas não rio deles. Tenho eu feito outra coisa com o ideal?
E o propósito que uma vez formei num hotel planeando a legenda?
É um dos pontos negros da biografia que não tive.»
Em geral, vemos como na obra de Pessoa o hotel está frequentemente associado a passagens que expressam pessimismo. Contudo, e como notámos, o hotel existe no imaginário pessoano também como metáfora do intermédio, do indefinido. Trata-se, a nosso ver, de uma metáfora do «nada que é tudo», dimensão ao mesmo tempo desassossegante e criativa na qual o poeta viveu e que, na sua vertente mais vitalista e dinâmica, resume-se nos versos do já citado poema «Tabacaria»:
«Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.»
Aliás, a ideia de hotel, também no sentido de «estalagem», existe na obra de Campos também como imagem envolvida no vortix modernista do «Sentir tudo de todas as maneiras»:
«Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim…
Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa, […]»
O hotel, portanto, como sítio-não-sítio, como imagem do transitório e do insubstancial, acaba por ter uma dupla função na escrita sonhante de Pessoa. Por um lado, representa o desassossegante vazio existencial do sujeito contemporâneo e do seu transitar na vida sem compreendê-la. Por outro, numa leitura mais especulativa e indireta, é uma das imagens daquilo que para Pessoa mais valor tinha: o não identificar-se com nada, na contínua metamorfose transformativa da existência, para poder ser tudo, no eterno sonho de poetar.
Fabrizio Boscaglia
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