Propomos aqui a leitura de cinco poemas de Fernando Pessoa, nomeadamente do heterónimo Ricardo Reis, que o autor português publicou durante a sua vida (1888-1935). Assim escreveu Pessoa em 1935 (em carta a Casais Monteiro), acerca deste heterónimo, que estreou publicamente em 1924:

«pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria»; «Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico»; «educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico».

Trata-se de um heterónimo neopagão, inspirado pela literatura e pela mitologia dos antigos gregos e latinos. A ele, o romancista José Saramago, que ganhou o Prémio Nobel, dedicou o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Neste livro, aliás, Saramago refere a Rua Oliveira ao Carmo, onde Pessoa mandava imprimir a revista Orpheu (1915) e onde, desde 2017, encontra-se instalado o Lisboa Pessoa Hotel.

Aqui se encontram os primeiros e o último poema que Pessoa publicou enquanto Ricardo Reis, inclusivamente a «Ode» que contém os célebres versos «Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui.».


Publicamos os textos assim como a imagem da publicação original, por ordem cronológica de publicação, com os dados bibliográficos de cada poema. A ortografia foi atualizada.

Boa leitura!

«Odes – Livro Primeiro (I, II, III)» (1924)

Seguro assento na coluna firme
                Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
                Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
                Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
                Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
                Seu ser, durando nela.

***

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
        Que em o dia em que nascem,
        Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o Sol, e acabam
        Antes que Apolo deixe
        O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia ,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
        Que há noite antes e após
        O pouco que duramos.

***

O mar jaz; gemem em segredo os ventos
                Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
               Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
                Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
               Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
                Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
                Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
                Ecoa de Saturno?

(Athena, 1, outubro de 1924, p. 19)

«Duas Odes» (1931)

Quando, Lídia, vier o nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
        Primavera, que é de outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo atual que as folhas vivem
        E as torna diferentes.

***

Ténue, como se de Éolo a esquecessem,
A brisa da manhã titila o campo,
       E há começo do sol.
Não desejemos, Lídia, nesta hora
Mais sol do que ela, nem mais alta brisa
        Que a que é pequena e existe.

(Presença, 31-32, março — junho de 1931, p. 10)

«Ode» (1933)

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

(Presença, 37, fevereiro de 1933, p. 8)

Nota introdutória e seleção por Fabrizio Boscaglia.

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