A cidade de Lisboa é cantada por grandes escritores e poetas portugueses como, entre outros, Cesário Verde, Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen. Não há dúvidas que o Livro do Desassossego de Pessoa seja uma das obras em que a beleza, a luz e a “alma” da capital de Portugal emergem de forma deslumbrante. Sobretudo (mas não só) no que diz respeito ao bairro da Baixa, onde se situa a Rua dos Douradores, em que “vive” e “trabalha” Bernardo Soares, semi-heterónimo de Pessoa ajudante de guarda-livros ao qual o próprio Pessoa “entregou” a escrita da última fase do Livro (outras fases foram “atribuídas” a Pessoa ortónimo e ao autor fictício Vicente Guedes).

Este diário fragmentário e sonhante, obra-prima da prosa poética pessoana, contém algumas entre as passagens mais fulgurantes, célebres e belas sobre Lisboa que alguma vez tenham sido escritas na história da literatura mundial. Neste post do blogue associado ao Lisboa Pessoa Hotel, destacamos cinco passagens do Livro do Desassossego sobre Lisboa, entre muitas possíveis, com o intuito de prestar homenagem a Lisboa, à beleza desta cidade e ao seu poeta mais universal: Fernando Pessoa.

1. «tipos curiosos, caras sem interesse»

(Foto de Deensel, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons)

«Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.»

Continuar a ler este texto, considerado o “Prefácio” do Livro do Desassossego, em que Pessoa conta o seu encontro fictício com o “autor” do Livro (edição de Jacinto do Prado Coelho, 1982).

2. «Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.»

(Foto de Jcornelius, CC BY-SA 3.0 DE, via Wikimedia Commons)

«Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspetos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em meditações abstratas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações. Não seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso é melhor ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.

O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.»

Ler no Arquivo Pessoa (edição de Jacinto do Prado Coelho, 1982).

3. «Oh, Lisboa, meu lar!»

(Foto de Yann Cœuru, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons)

«Este ar baixo e nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco transparente.

O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do embrulho eterno…

“Como está só me lembra de uma”, comenta estatisticamente.

Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca.

Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A treva encarvoou-se de silêncio.

Súbito, aço vivo,
Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo!


Oh, Lisboa, meu lar!»


Edição do Livro do Desassossego de Richard Zenith (Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, § 74)

4. «de Lisboa à China»

(Foto de Pedro Ribeiro Simões, Portugal, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons)

«Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma.»


Ler a versão integral no Arquivo Pessoa (edição de Jacinto do Prado Coelho, 1982):

5. «na Rua dos Douradores»

(Foto de Liliana, arquivo particular de Fabrizio Boscaglia)

«Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono.

Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.»


Continuar a ler este texto, editado por Richard Zenith, na versão do Livro do Desassossego por ele organizada ((Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, § 437)

O Livro do Desassossego foi escrito por Pessoa entre 1913 e 1935. Tendo ficado em grande parte inédito à data do falecimento do escritor, a primeira edição extensa da obra foi publicada em 1982 pela editora Ática (Lisboa), tendo havido várias edições posteriores.

Para ler e estudar online o Livro do Desassossego.

Fabrizio Boscaglia

Nota: a ortografia dos textos foi por nós atualizada.

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