Constituindo um período importante na vida de Fernando Pessoa, o ano de 1919 marca, a nível internacional e nomeadamente na Europa, a oficialização da cessação das hostilidades da Grande Guerra (1915-1918), através da estipulação do Tratado de Versailles, que foi assinado em junho, poucos dias após Pessoa ter chegado aos 31 anos de idade. Eis como o escritor vivia naquele período e o que escrevia, exatamente há um século, em Lisboa.

Desassossego político

Política

Apesar de se ter conseguido uma solução pacífica ao primeiro conflito mundial, o desassossego das civilizações e das nações continuava, e Portugal, neste contexto, não constituía exceção. Não é um acaso, de facto, que neste ano Fernando Pessoa tenha seguido muito de perto as convulsões políticas do seu país, o que deu como resultado literário, entre outros, uma parte da “biografia” do heterónimo Ricardo Reis. Médico e poeta classicista, autor das célebres Odes e convicto monárquico, Reis auto exilou-se no Brasil a 13 de fevereiro, dia em que as forças republicanas venceram os militantes que em janeiro tinham proclamado a Monarquia no Norte de Portugal, nomeadamente no Porto, cidade “natal” do próprio Reis. Não é só nas ficções heteronímicas que Pessoa dialoga com a atualidade lusa, já que, entre maio e agosto de 1919, o escritor publica dois ensaios políticos intitulados «Como organizar Portugal» e «Opinião Pública», na revista Acção, que apoiava as ideias do recém-falecido Presidente Sidónio Pais. São estas, até à data, as únicas duas publicações conhecidas de Pessoa neste ano.

O ano do Amor

Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz, correspondência amorosa 1919-1935

Na biografia de Pessoa, o ano de 1919 ficou conhecido sobretudo por causa de uma questão, não política, nem estritamente literária, aliás muito íntima e pessoal. Trata-se do namoro com Ofélia Queirós, a única mulher com a qual Pessoa se lançou, ao longo da sua vida, num relacionamento sentimental relativamente duradouro e sem dúvida marcante, a vários níveis. Os dois conheceram-se na Baixa de Lisboa em novembro, na firma Félix, Valladas & Freitas, Lda, sediada na Rua da Assunção n.º 42, 2º, sendo esta uma das muitas empresas onde o poeta trabalhou como tradutor. Ao terem trabalhado juntos durante um breve período, Fernando e Ofélia apaixonaram-se e começaram um namoro, feito de cartas, encontros pela cidade de Lisboa, trajetos de elétrico e… muito carinho:

«Fiquei louco, fiquei tonto…

Meus beijos foram sem conto,

Apertei-a contra mim,

Aconcheguei-a em meus braços,

Embriaguei-me de abraços…

Fiquei louco e foi assim…»

(Pessoa, in Lopes, 1990, p. 60)

O «Nininho» e o «Bebé» namoraram em duas fases distintas, aproximadamente entre 1919 e 1920, e entre 1929 e 1930. O namoro não se concretizou num casamento, por causa de Pessoa não se encontrar em condições materiais e psicológicas para levar à frente um projeto familiar. Além disso, Pessoa sabia de ser um génio, e tinha há tempo percebido (ou decidido?) que a sua missão literária não podia deixar espaço a mais nenhum “casamento”. Muito há por dizer sobre este amor, que foi autêntico e significativo para os dois. E de certeza não faltarão, em 2019, ocasiões para se celebrar o centenário desta importante página da vida do grande escritor…

Meter a China… em Benfica

O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

No que respeita à vasta obra que Pessoa deixou inédita aquando do seu falecimento (1935), o ano de 1919 foi prolífico principalmente no que respeita à produção do heterónimo Alberto Caeiro, que neste ano “escreveu” os Poemas Inconjuntos, uma obra que Pessoa retrodatou para que encaixasse na biografia fictícia de Caeiro, o mestre dos heterónimos, que, no drama pessoano, tinha “falecido” em 1915. Eis um dos seus poemas, produzidos em 1919:

«Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas —

Que felicidade é essa que pareces ter— a tua ou a minha?

A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?

Não, nem a ti nem a mim, pastor.

Pertence só á felicidade e á paz.»

(Pessoa, 1925, p. 200)

Ainda quanto à produção pessoana em versos, datam deste período vários poemas ortónimos e relativamente poucos dos heterónimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Não faltam versos de grande profundeza sobre uma das dimensões que mais fascinaram a alma filosófica de Pessoa, isto é, o refletir-se sobre o uno e o multíplice, sobre o finito e o infinito, e sobre as suas paradoxais ligações:

«Qualquer caminho leva a toda a parte.

Qualquer poncto é o centro do infinito.»

(Pessoa, in Lopes, 1990, p. 121)

No que respeita ao Livro do Desassossego, que Pessoa produziu entre 1913 e 1934, data de 1919 um trecho em que o autor, num dos seus devaneios, mergulha «no sonho de que sou um major reformado num hotel de provincia» (Pessoa, 2013, p. 207). É, esta, uma das imagens de «hotel» que Pessoa produziu ao longo da sua vida, na sua obra. Repare-se que, em 1919, a vida de Pessoa era de certa maneira ainda uma vida viajante, porque o poeta ainda não tinha uma morada fixa e transitava por apartamentos entre as zonas da Avenida Almirante Reis e Benfica. Deve-se provavelmente a ter morado nesta zona, periférica se comparada com o centro da capital, a inspiração para uma passagem do Livro do Desassossego, produzida anos depois e reveladora do pensamento de Pessoa sobre a viagem e a liberdade:

«Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vel-o a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tel-a sahindo de Lisboa até Bemfica, e tel-a mais intensamente do que quem vá de Lisboa á China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma.»

(Pessoa, 2013, pp. 366-367)

Em 1920, Pessoa irá finalmente instalar-se naquela que foi a sua mais duradoura (e última) morada, na Rua Coelho da Rocha, n.º 16, atual sede da Casa Fernando Pessoa. Foi ali morar inicialmente com a sua mãe Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, entretanto viúva de João Miguel Rosa, padrasto de Pessoa, que tinha falecido ainda em 1919.

Este ano foi, como vimos, um período de desassossego e amor para o poeta e pensador português. Foi um ano importante e marcante na vida dele, principalmente por causa do namoro com Ofélia. Hoje, cem anos depois, os fragmentos, versos e cartas de Pessoa continuam a desassossegar e apaixonar cada vez mais leitores, viajantes e estudiosos, num mundo que segue ansiando pela paz.

Fabrizio Boscaglia

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Textos citados:

LOPES, Teresa Rita (1990), Pessoa por conhecer: textos para um novo mapa, II, Lisboa, Estampa.

PESSOA, Fernando (2013), Livro do Desassossego, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, Tinta-da-china.

PESSOA, Fernando (1925), «Escolha de poemas de Alberto Caeiro (1889-1915)», Athena: revista de arte, 5, 197-204.

Ao citarmos os textos, mantivemos a ortografia original de cada edição