Poesia é como o canto, pode ser a capella ou com companhia. Neste caso, a companhia não foi instrumental. A companhia veio de norte a sul, incluindo ilhas e, no seu regaço, trouxe vinhos lusos. Do espumante ao vinho da Madeira. Os instrumentos foram as vozes e os sorrisos.

Copas de Poesia

“Copas de Poesia e Gravura” um evento desenvolvido pelo Turismo de Portugal em Espanha para promover o destino de Portugal, que o Lisboa Pessoa Hotel abraçou e acolheu no seu espaço, no dia 11 de fevereiro.

O evento contou com a colaboração do Turismo de Portugal em Espanha nas pessoas de Maria de Lurdes Vale, diretora do Turismo de Portugal em Espanha e Ariana Fonseca, André Pinguel do Wine Post e a Storyteller Sandra Nobre.

Copas de Poesia na Biblioteca Fernando Pessoa, Lisboa Pessoa Hotel

Poesia e Vinho: do norte a sul e Ilhas

A poesia e a prova de vinho começou pelo Centro de Portugal. Seguiu-se os Açores, Lisboa, Porto e Norte, Alentejo, Algarve, finalizando na pérola do Atlântico – a Madeira. Revisitaram-se autores como Fernando Namora, Natália Correia, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Nuno Júdice e José Tolentino Mendonça.

Os autores

Fernando Namora

TERRA

Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

In Novo Cancioneiro

Natália Correia

A audaz Natália Correia, que lutava pela despenalização do aborto, recitou no parlamento o poema de nome “Truca-truca” e interrompeu a sessão parlamentar.

TRUCA-TRUCA

Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o orgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Outro poema de Natália Correia:

NÃO SOU DAQUI

Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos,
Sou de mim mesma, pomba húmida e brava
De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros,
barbeados pelo sol, penteados pela bruma!
Que extraíste do ar dessa coisa nenhuma
E genesis, a pluma do meu país natal.
(…)
Não sou daqui. A minha pátria não é esta
Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida, sou solta, talvez nuvem.
Nuvens, minhas irmãs, que me argolais os
pulsos!
Tomai os meus cabelos. Levai-os para a floresta.

In Cântico do País Emerso (1961)

O poema pela voz de Sandra Nobre

Fernando Pessoa

Um poema de Fernando Pessoa escolhido por Ricardo de Belo de Morais, responsável pela Biblioteca da Casa Fernando Pessoa.

Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?

A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?

Entendo, como um carrossel,
Giro em meu torno sem me achar…
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar…)

11-2-1931

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955

O Poema pela voz de Ricardo Belo de Morais

Outro poema de Fernando Pessoa:

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

s. d.
Poesias. Fernando Pessoa.

Sophia de Mello Breyner Andresen

VARANDAS

É na varanda que os poemas emergem
Quando se azula o rio e brilha
O verde-escuro do cipreste — quando
Sobre as águas se recorta a branca escultura
Quasi oriental quasi marinha
Da torre aérea e branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e divina
E sobre a página do caderno o poema se alinha
Noutra varanda assim num Setembro de outrora
Que em mil estátuas e roxo azul se prolongava
Amei a vida como coisa sagrada
E a juventude me foi eternidade

In O Búzio de Cós (1997)

José Saramago

INTIMIDADE

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.


In Os Poemas Possíveis (1966)

Nuno Júdice

NUNCA SÃO AS COISAS MAIS SIMPLES

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.

José Tolentino Mendonça

LIVRO DAS PEREGRINAÇÕES

A vastidão do mundo
para o peregrino
não é mais do que um quarto vazio
Não interrogues o sentido
Agradece o passo lento
Entre as nuvens de pó
A tua sede peregrino
não se aplaca na água
mas pela pedra
Quando saíres das cidades
onde ouvires risos
é a minha casa
Um dia
arderás o caminho
para que ninguém siga os teus passos
Agora só resta
tornares-te
o poema

As gravuras de Manuela Crespo

Aos poemas, aos vinhos juntaram-se as belíssimas gravuras de Manuela Crespo, médica neurologista e criadora artística.

Gravuras de Manuela Crespo

No encerramento do evento ainda houve lugar a debate e continuou-se a saborear o vinho, entre outras iguarias.

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Descubra Lisboa & Pessoa, a partir do Lisboa Pessoa Hotel.