Paulo Borges é um dos filósofos portugueses que, no século XXI, mais atenção têm dado à obra de Fernando Pessoa, para sondar e interpretar o profundo, labiríntico e surpreendente pensamento do mais universal dos escritores lusos. A Pessoa, Paulo Borges dedicou nove livros, alguns traduzidos para outras línguas, e dezenas de conferências, entre as quais uma no Lisboa Pessoa Hotel, intitulada: «A vida como sonho: reler o Livro do Desassossego à luz do “sonho lúcido” e do “yoga do sonho”». Nesta, como em outras ocasiões, o pensador propôs uma interpretação da obra pessoana através de comparações com as grandes tradições filosóficas e espirituais universais, nomeadamente, neste caso, com o budismo e o yoga.
Professor de Filosofia na Universidade de Lisboa, onde dinamiza o Núcleo de Pensamento Português e Cultura Lusófona, Paulo Borges é ainda poeta, romancista, fundador e membro de associações e organizações de tipo filosófico, ético, ecológico, entre outros domínios aos quais se tem dedicado, numa incessante busca e partilha de conhecimento e sabedoria, a vários níveis e em diferentes âmbitos da sociedade, o que faz dele uma figura singular e uma voz original no panorama cultural luso. Tivemos o prazer de sentar com ele após a sua palestra no Lisboa Pessoa Hotel, para aprofundar alguns temas pessoanos, nesta breve e incisiva entrevista, pela qual muito o agradecemos.
Caro professor Paulo Borges, na sua atividade intelectual e filosófica, tem trabalhado, entre outros temas, o do sonho em Fernando Pessoa. Pode sucintamente dizer-nos qual é a sua abordagem a este fascinante tema na obra e no pensamento de Pessoa?
Paulo Borges: «Um dos temas mais característicos da obra pessoana é a experiência da vida, do mundo e da realidade como ilusão ou sonho insubstancial, como se salienta no Livro do Desassossego de Bernardo Soares. O tema tem profundas raízes na tradição literária ocidental (Píndaro, Cervantes, Shakespeare, Calderón de la Barca…), em paralelo à sua rejeição pela tradição filosófica dominante. Esta, ao invés do pensamento indiano, procura assegurar a realidade das coisas para tornar possível a ciência e a técnica, rejeitando a ideia do mundo como obra de um Deus ilusionista ou enganador, como em Platão e Descartes. O tema procede já das culturas indígenas, onde um tempo primordial, o “Tempo do Sonho”, como nos aborígenes australianos, opera a transição do caos para o cosmos. Nele tudo é possível, pois as formas dos seres e das coisas ainda não se definiram, estando tudo em metamorfose. Isto contrasta com Platão e Descartes, mas converge com a tradição poético-literária ocidental e com Schopenhauer e Nietzsche, que vê o conhecimento e a vida humanos como “ilusão” antropomórfica e “sonho acordado”. Pessoa inscreve-se nesta linhagem dissidente, assumindo o sonho ou a ilusão como essência do real. O que todavia procuro mostrar é que Pessoa se inscreve ainda, mais significativamente, apesar de divergências, numa tradição, a indo-tibetana, que explora a fundo as possibilidades oníricas para o conhecimento e a libertação espirituais, enquanto a experiência de Bernardo Soares dialoga implicitamente com uma das mais recentes descobertas neurocientíficas, a da possibilidade de se cultivar sonhos lúcidos. Isto lança uma luz nova sobre um dos temas maiores da sua obra, abrindo perspectivas inéditas nos estudos pessoanos. Com esta investigação, procuro continuar a compreender Pessoa à luz de temas orientais, bem como da fenomenologia dos estados diferenciados de consciência.»
Vimos que, entre as atividades científicas que organizou na Universidade de Lisboa, há o colóquio «As viagens da saudade», que hospedou várias comunicações sobre Pessoa. Dado o seu interesse pelo tema da viagem, e como o Lisboa Pessoa Hotel recebe diariamente viajantes do mundo inteiro, seria interessante sabermos como a viagem emerge, quer no pensamento de Pessoa, quer no seu.
Paulo Borges: «O tema da viagem é um dos grandes motivos da literatura e do pensamento universais e em geral pode dizer-se que a viagem exterior conduz à interior, pois o contacto com outros povos, culturas e paisagens estimula ao descentramento e abertura das mentes e dos corações. No pensamento de Pessoa avulta a viagem interior na qual o sujeito, descobrindo que o seu fundo é, não um “eu” substancial e fixo, mas um vazio, um espaço aberto, informe e indeterminado, um “nada” ou “ninguém”, experiência que se pode tornar tudo, mediante um radical exercício da imaginação criadora, o que conduz à criação heteronímica. O meu pensamento dialoga com o de Pessoa, embora exceda o domínio psicológico e procure considerar a viagem como a do próprio fundo sem fundo do real a auto-experienciar-se de modo sempre novo na multiplicidade de vidas e fenómenos.»
Nas última décadas, Fernando Pessoa tem vindo a tornar-se num fenómeno global. A sua obra é traduzida para dezenas de línguas, lida por milhões de pessoas, as artes e filosofia interpretam o seu legado, nascem projetos turístico-literários sobre ele, como o próprio Lisboa Pessoa Hotel. Como acha que Pessoa veria esta sua colossal e multifacetada fama póstuma e universal, se pudesse comentá-la?
Paulo Borges: «Por um lado como natural, por outro com muita ironia. Isto porque Pessoa, apesar de precocemente consciente do seu génio literário e do seu sucesso inexorável – profetizou-se como “Supra-Camões” e o “poeta supremo da Europa, de todos os tempos”, aos 24 anos – , nunca cedeu a estratégias para se tornar famoso em vida, desconsiderando mesmo a publicação, com as consequências de ter uma vida financeira muito precária. Porventura assim fez por ver a vida como sonho e ilusão.»
Entrevista realizada por Fabrizio Boscaglia
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