O Natal é uma das principais festividades cristãs e uma das ocasiões festivas mais celebradas no mundo, inclusivamente por não religiosos. Pessoa não negligenciou incursões literárias sobre este dia, tão especial nos costumes e cultos da humanidade. Trata-se de referências dispersas e heterogêneas, em que emergem várias vertentes da sensibilidade e da poética pessoanas, quer literárias, quer filosóficas e religiosas.

A este respeito, é preciso dizer que Pessoa teve, ao longo da sua vida, várias fases e sensibilidades religiosas e espirituais, e acabou por reconhecer-se no contexto da Cristandade, mas não das Igrejas. O cristianismo de Pessoa foi – sobretudo nos últimos anos da sua vida – o dos gnósticos, como ele próprio afirmou em 1928. Trata-se de uma vertente cristã considerada heterodoxa, com supostas ligações aos Templários e à mística, temas que muito interessavam ao autor de Mensagem.

Além disso, é importante referir que os textos aqui selecionados não têm necessariamente a ver com o Natal enquanto festividade religiosa, mas também como recorrência e imaginário cultural, bem como enquanto pretexto para a reflexão sobre a vida.

1. Natal pessoano

Talvez o mais conhecido poema de Pessoa sobre o Natal seja um que foi publicado durante a sua vida, na revista modernista Contemporânea, em 1922. Aqui, emerge o lado mais cético de Pessoa, assim como um certo tédio, agnosticismo e ocultismo de fundo. Trata-se, evidentemente, de um poema provocador e “desassossegador”, que mostra uma das facetas mais complexas do pensamento pessoano: a incapacidade do buscador de conhecimento perante o insondável mistério da vida.

«Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.»

2. Saudades do lar

Menos conhecido ao grande público, mas também publicado em vida por Pessoa, é outro poema intitulado «Natal», que saiu em 1928 n’O Notícias Ilustrado. Poema da saudade, em que Pessoa trabalha de forma original o imaginário do lar e da família, típico da Natividade:

«Natal… Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Estou só, e sonho saudade.

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!»

3. Natal a escrever

Entre os versos que Pessoa dedicou ao Natal, existem também alguns que o escritor produziu no próprio dia de 25 de dezembro, neste caso, no ano de 1930. Repare-se que Pessoa foi um atento estudioso do chamado «Jesus histórico» e não é de excluir que, neste poema, apareça um indireto comentário no que respeita à referida data como sendo a «da convenção», ou seja, como não sendo necessariamente a data do efetivo nascimento de Cristo, antes constituindo uma convenção que as comunidades cristãs adotaram sucessivamente à escrita dos evangelhos, possivelmente por volta do século IV EC. Mais uma vez, eis Pessoa “desassossegar” o Natal…

«Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

Não quero ser dos ingratos

Mas, com este obscuro céu,

Puseram-me nos sapatos

Só o que a chuva me deu.»

4. Nascimento e passagem

Também escrito num dia 25 de dezembro, em 1918, eis mais um poema em que Pessoa, não mencionando diretamente o Natal, aborda, contudo, o tema do nascimento, no contexto geral de um escrito em que aflora a difícil tomada de consciência da passagem do tempo, a qual se resolve no «perdão» do último verso, este sendo um tema típico do cristianismo e da espiritualidade universal. A indireta menção à Luz, através da imagem do sol, parece-nos mais uma referência ao Natal enquanto festividade que quase coincide com o solstício de inverno.

«O sol às casas, como a montes,

Vagamente doura.

Na cidade sem horizontes

Uma tristeza loura.

Com a sombra da tarde desce

E um pouco dói

Porque quanto é tarde

Tudo quanto foi.

Nesta hora mais que em outra choro

O que perdi.

Em cinza e ouro o rememoro

E nunca o vi.

Felicidade por nascer,

Mágoa a acabar,

Ânsia de só aquilo ser

Que há-de ficar —

Sussurro sem que se ouça, palma

Da isenção.

Ó tarde, fica noite, e alma

Tenha perdão.»

5. Natal no Desassossego

O último texto que propomos nesta sucinta seleção natalícia de Pessoa não é um poema, mas faz parte da sua obra maior em prosa: o Livro do Desassossego. Aqui, num trecho intitulado «Mais “pensamentos”», o autor, mais do que focar no que é o Natal do ponto de vista religioso ou simbólico, transmite a sua experiência de emoções e imagens, que o ligam, empaticamente, à vasta comunidade humana e espiritual de todos os tempos. Encontramos aqui o Pessoa sensacionista do «Sentir tudo de todas as maneiras», num misto entre subjetivismo e decadentismo. Elementos típicos do Livro do Desassossego.

«Dia de Natal. (Humanismo. A “realidade” do Natal é subjetiva. Sim, no meu ser. A emoção, como veio, passou. Mas um momento convivi com as esperanças e as emoções de gerações inúmeras, com as imaginações mortas de toda uma linhagem morta de mysticos. Natal em mim!)»

Para finalizar, e como vimos, o Natal de Pessoa, pelo menos nestes textos, não é o Natal convencional das Igrejas, antes é um tema e uma imagem que o autor aborda de forma pessoal, original, por vezes desafiante. Não faltam, nestes escritos, ocasiões para refletir sobre temas universais da humanidade. Terá sido esta, no fundo, a intenção de Pessoa ao escrever – e, em alguns casos, publicar – estes versos e trechos: promover a reflexão, o pensamento e o conhecimento. Será esta, então, a sua “prenda de Natal” para nós? Será o estímulo para o renascer e o revitalizar-se da nossa busca de conhecimento, logo o desafio para procurar sentir, imaginar e pensar de forma mais profunda e inspirada acerca da vida e de nós próprios? 

Fabrizio Boscaglia

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Alguns textos e arquivos consultados:

PESSOA, Fernando, Poesia 1926-1930, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 187.

__, «Natal», O Notícias Ilustrado, 30 dez. 1930, p. 15

__, «Natal», Contemporânea, 6, 1922, p. 88.

Arquivo LdoD

Arquivo Pessoa